Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Daniel Riva e os Exércitos de Escarro




"Daniel Riva e os Exércitos de Escarro"





Oh, baby, it's cryin' time, oh, baby, I've got to fly

Enquanto aquele careca sentava-se a minha frente, assim cantavam os quatro adolescentes que também se aconchegavam numa mesinha próxima. Pareciam daqueles que têm o sonho de formar bandas de rock, e dois com baquetas de bateria, além da letra de Four Sticks na camisa de um deles, ainda com John Bonham como estampa. Eram quatro baquetas e o Led Zeppelin martelando a bateria do meu pensamento. Um deles seguia como se fosse Plant misturado ao MP4 que escutavam.

Got to try to find a way, got to try to get away

Eu tinha mesmo de achar um caminho. Ele não tinha cabelo, mas se tivesse já deveriam ser grisalhos, não sei como conseguia manter um bom aspecto físico fumando tanto, André deveria ter pra lá dos seus quarenta anos. Quase cinqüenta? Talvez tivesse idade para ser meu pai.

- Não pensei que fosse entrar em contato comigo, jovem. Então, o que quer?

A sem-cerimônia de certo me surpreendeu principalmente de alguém como ele, mas depois das últimas barbaridades que ouvi, já deveria ter me acostumado a não me surpreender.

'cause you know, I gotta get away from you, babe

- Você me deu seu cartão, disse que eu poderia entrar em contato. – Eu quase disse como a música.

- É a mulher, não é?

Oh, baby, the river's red, aw, baby, in my head

There's a funny feeling goin' on

I don't think I can hold out long

- Sim, é ela. Depois do que você me falou, fiquei pensando. Tentei algo com ela, mas não foi o que eu pensava.

Ele ainda gargalhou quando eu disse aquilo, pediu tequila, não entendi, estávamos numa cafeteria, mas ele pediu tequila. Nem prestei atenção no garçom, a gargalhada dele me prendeu no escuro daquela garganta, eu pude me transportar para as cordas vocais e vibrar como elas.

- Logo imaginei. Mas ao menos você fez alguma coisa. Eu lhe falei, só assim mesmo. Porém, você continua sem conhecê-la. É ridículo o modo como você a trata, e também como me falou que aquele idiota do namorado o faz. Santa? Só se for do pau oco.

- Ei! Não fale assim! Respeite-a, e a mim também. Não acredito nessas coisas que você disse! Eu a conheço muito bem, somos amigos de infância!

Gargalhou novamente, e bebeu um pouco da tequila, nem me atentei quando o copo chegou, mas estava descendo pela garganta após a gargalhada.

- Olhe para você! Um tolo! Parece um daqueles idiotas de séculos atrás! Isso que tem entre as pernas é um pau ou o quê? Já sabe usar, não sabe? Quando você esfregar essa coisa inútil na cara dela vai entender todos os traumas da infância dela! Aí sim você vai conhecê-la! Eu em uma noite conheceria mais que você! Gostos e trejeitos são nada. Ela não deve passar de uma vagabunda! E tem cara de quem gosta!

Meus olhos estavam mais arregalados que a lua cheia, já era noite e os meus pensamentos seguiram o ritmo, escurecendo. Fiquei atônito, não sabia o que dizer perante aquela coisa repugnante que ele disse. Eu nunca havia imaginado qualquer coisa do gênero, mas as corujas piaram e o rio secou.

And when the owls cry in the night

Oh, baby, baby, when the pines begin to cry

Baby, baby, baby, how do you feel

If the rivers run dry, baby, how would you feel

- Daniel! Você parece um garoto mimado do papai, porque não vai procurá-lo? Ou a mamãe!

- Não tenho pai. Nem mãe.

Silêncio.

Não houve risada. O tom mudou.

- Mais uma tequila para mim, e um café para o jovem.

- Sim, um café.

Olhamo-nos por uns instantes, e neles havia mais palavras que as ditas desde que nos conhecemos, por um momento eu pude escutar a batida do coração dele. Ou seria Four Sticks?

Craze, baby, mm, the rainbow's end

Hoo, baby, it's just a den for those who hide

a-hide their loves to depths of lies

and ruined dreams that we all knew so, babe

- Não é só isso, eu sei. O que mais lhe aflige Daniel?

- Eu a beijei. Ela disse ‘eu não te amo’, fiquei pensando nisso. Agora pouco falei com ele, você sabe... E ele desconfia que ela esteja o traindo. Pediu para que eu observasse, tentasse saber alguma coisa sobre.

- “Eu não te amo”... O que você sabe sobre o que você sente Daniel? E você confia mesmo nela? Se o próprio namorado desconfia...

- Sim! Confio. Ela não faria isso, uma prova é que ela me disse ‘eu não te amo’...

A outra pergunta... Eu não consegui responder, lembrei-me de Novalis quando dizia que o mistério aponta para dentro. Creio que a pior coisa que poderia lembrar, afinal, romantismo.

- Daniel, se as pessoas fossem confiáveis os exércitos eram treinados para a paz, e não para a guerra. É tudo questão de relações de interesses de poder sobre os instintos primitivos de cada um, o controle da massa em idéias é somatório.

And when the owls cry in the night

And, baby, when the pines begin to cry

Oh, baby, baby, how do you feel

If the rivers run dry, baby, how will you feel

Estava ofegante, não sabia o que dizer. Era como se as minhas esperanças, os meus pensamentos, os meus sonhos, as minhas expectativas, tudo fosse nada. A minha única chance de me completar, de não ser seco, fosse nada. Deus! Meu Deus! Eu pedi ajuda, mesmo mudo.

- Daniel, ninguém completa ninguém. Vejo isso nos seus olhos.

A tequila desceu mais um pouco. André ainda tirou algo da jaqueta, sem que eu pudesse responder qualquer coisa.

- Conhece este lugar?

- Não. – era bonito, mas não conhecia. Até virar e perceber que era um cartão postal. Grécia.

- Deve conhecer isto, não?

E me mostrou um bolo de dinheiro, tirou também da jaqueta. Não reconheci a primeira vista, porém...

- Isso são euros!

- Sim, doze mil. Imagino que está totalmente sem dinheiro. Sem trabalho. Você vai conhecer Atenas. Esse dinheiro vai lhe ajudar no necessário lá. Envio a passagem para seu endereço dentro de uma semana, e nesse mesmo período você parte. Sabe falar grego, não sabe?

- Do que está falando? Está louco? Que tipo de gente anda com doze mil euros no bolso da jaqueta?

- O que você sabe sobre o que você sente Daniel?

Não consegui falar mais nada, nem negar. Eu queria ser mais que um Rio, naquele instante eu quis ser uma Jóia do Mar.

Ah-ahh, ah-ah-ahh-ay

Ahh-ahh-ahh, ah-ah, ah-ah

Ahh-ah-ah-ahh, ah-ah, ah-ah, ah

Baby, how do you feel?

- Daniel. Sabe para onde correm os rios? Sabe o que eles se tornam? Está na minha hora. Tenho de ir.

Oh, yeah, brave I endure

Woo, yeah, strong shields and lore

N-they can't hold the wrath of those who walk

in the boots of those who march

baby, through the roads of time so long ago

Ele partiu. Eu também parti, mas ainda sentado. Só com alguns minutos percebi que os jovens também haviam ido embora. Eu fiquei, olhei para a mesa. André havia esquecido a carteira. Não consegui me levantar para casa. Ainda passei um tempo ali, sentado, pensando. A curiosidade me atropelou e eu olhei a carteira, nada além de poucos cartões, e um papel amassado, com uns versos escritos:



“Soneto Cigano”



Não sei quantos necessários oceanos

Que m’inundam e quantos se esvairão

Para matar meu vivo coração

Qu’afunda como nauta dos enganos


Sigo no mundo das trilhas a mão

Dos vales e desertos sou cigano

Se calo há algo que segue falando

Que dores tentam, mas não calarão


Em meus dedos se conservam anéis

Circundam-se caminhos nos meus brincos

Cantam as minhas ilusões cruéis


Pelos meus sonhos de que tanto brinco

O pranto oceânico que me deságua:

São fados: beijos, dor, solidão e mágoa.


Nunca me passou pela cabeça que André Berilo escrevesse coisas do gênero, quiçá poemas. Era o nome dele ao final. E então pensei o quanto humano ele é. Pela primeira vez na minha vida, eu senti que havia, realmente, conversado com alguém...

Voltei para casa, não bebi vodka, nem tequila como Berilo, dessa vez só café.

A noite dormiu, a cafeteria fechou, e jazia na mesa de Daniel Riva três copos de café e poucos guardanapos.


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 01h23 de 20 de Dezembro de 2010.


Série Daniel Riva:

Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva

Daniel Riva na Promoção da Semana


A Cara Valente de Daniel Riva

Daniel, Cada um é seu próprio escarro


Please, Daniel, isso é um bom conselho

Daniel Riva entre a Traição e a Esperança




Pintura:
Edvard Munch. Vampiro, de 1897, óleo sobre tela.



Palavra da Vez:

confiança
s. f.
1. Coragem proveniente da convicção no próprio valor.
2. Fé que se deposita em alguém.
3. Esperança firme.
4. Atrevimento.
5. Insolência.
6. Familiaridade.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Daniel Riva entre a Traição e a Esperança


"Daniel Riva entre a Traição e a Esperança"

Sempre gostei de tardes nubladas. E essa me parecia das melhores. Não sei, mas o castanho das árvores me parece tão mais bonito nessas tardes, feito cabelos úmidos, ou olhos emotivos. Enfim... O silêncio daquela cafeteria ao ar livre começava a conversar com o som de um radinho de pilha duas mesas depois da minha:

Como todos cantaram, eu também não poderia deixar de cantar. Lá menor! Serra da Boa Esperança.

Violão, cavaquinho, pandeiro e flauta começam a cantar.

Grande Lamartine Babo, um dos sambas mais bonitos da música popular brasileira.

Ainda pude ver um casal de cabelos branquinhos de amor numa mesinha próxima, ambos suspiraram e de um deles ouvi: “Ótimo na voz do Altemar Dutra”, definitivamente eu não era o único que prestava atenção naquele velinho que segurava o radinho de pilha, com suas mãos trêmulas de certeza, seus olhos de angústia escondidos por óculos-escuro de luto pela vida, suas rugas de desgraças, sua boina de nostalgia em cima da mesa cinza de complacência, suas roupas mortas no tempo de décadas atrás, seus poucos fios de cabelo de instantes de felicidade, todos caducos como a boa esperança. Tinha cara de quem era de Minas, será que aquele velhinho esguio e franzino era da Serra da Boa Esperança?

Serra da Boa Esperança

Esperança que encerra...

No coração do Brasil

Um punhado de terra

No coração de quem vai. . .

No coração de quem vem

Serra da Boa Esperança

Meu último bem

Por um momento tive medo de a esperança ser meu último bem...

- Daniel, tá tudo bem?

Só depois percebi quantas vezes fui perguntado disso, não entendia o motivo de perguntar incessantemente. Ele estava ali, na minha frente. Eu não conseguia reconhecê-lo, a imagem dele parecia perdida no tempo em que éramos meninos e jogávamos bola no meio da rua de paralelepípedo. Sentia saudades daquele tempo, meu amigo, mas estávamos perdidos um do outro. Estávamos ali, para o café que ele havia convidado. Em verdade, para o que ele queria falar...

Parto levando saudades

Saudades deixando

Murchas, caídas na serra

Lá perto de Deus

- Estou angustiado, Daniel, não sei o que faço...

Não me lembro bem do que ele falou antes de chegar à frase de agonia, deve ter falado sobre como é bom me ver, o que eu não poderia dizer o mesmo. Não conseguia entender quando foi que eu parei de enxergar aquele meu amigo de pele morena do sol, cabelos curtos e castanhos claro, olhos negros, boca fina e nariz agudo; não sei, ele parou com menos de um metro e meio na minha memória. Eu amava aquele menino, hoje não consigo reconhecê-lo.

Levo na minha cantiga

A imagem da serra

Sei que Jesus não castiga

Um poeta que erra. . .

Nós os poetas erramos

Porque rimamos também

Os nossos olhos

Nos olhos de alguém

Que não vem...

Os nossos versos eram brancos, a nossa rima falha. Os seus gestos eram de pura agonia, transtorno; e eu não acreditava como ele ainda confiava tanto em mim, amava-me? Ainda? Como pode o amor morrer só de um lado? O amor não é uma avenida de mão dupla?

- Acho que ela está me traindo, Daniel...

Os olhos dele estavam vermelhos e lacrimosos feitos os sentimentos dentro de mim. Não conseguia entender que ele me falava aquilo, precisei ouvir mais vezes que as vezes que ele me perguntou se eu estava bem...

- Acho que ela está me traindo, Daniel... Preciso de sua ajuda... A santa... Pode me ajudar? Tentar saber? Falar com ela? Sondar?

Olhei para os lados como quem procura solução, salvação, e só encontra descrença, surpresa e desesperança no meio do amor de dois velhinhos na Serra da Boa Esperança. Não! Ele veio pedir aquilo pra mim! Justo depois do beijo! Mas não poderia ser comigo, não... Mas... Não acreditava que ela poderia fazer isso, deveria ser coisa da cabeça dele. E só então consegui reagir...

- Obrigado, Dani. Sempre soube o quanto somos amigos, sempre soube que sempre poderia contar com você, em qualquer situação... Foram ótimas essas horas, esse café. Preciso ir, está na minha hora. E isso é pra lhe ajudar, não se esqueça disso... Procure ajuda meu amigo, não pode ficar assim...

Ignorei muito do que ele falou, assim como sua imagem que se anuviava pela esquina naquela tarde nublada, tudo pela idéia da traição entre eles. Eu não sabia se choveria ou se o Sol apareceria. No entanto, eu me reconfortei de como o castanho das árvores era bonito. Não tive muito problema em aceitar a esperança dentro de mim, a que talvez ela não o amasse... Como eu poderia?! Não poderia deixar a felicidade nascer em mim pela desgraça deles... Mas se ela o traísse... E eles se separassem... Não! Ah! Melhor eu mudar meus pensamentos, depois penso sobre isso... O “eu não te amo” dela ainda me martela, espero que André chegue logo. Ao menos ajustarei tudo no mesmo dia, marquei com os dois e espero que as duas conversas dêem certo; uma já deu.

Serra da Boa Esperança

Não tenhas receio

Hei de guardar tua imagem

Com a graça de Deus

Ó minha serra eis a hora

Do adeus vou-me embora...

Deixo a luz do olhar

No teu luar

Adeus. . .

Para onde foi o velhinho da serra da boa esperança? Só senti o vulto das últimas notas. Ah, até o casal branquinho já se vai. Como são bonitos. Será que o cabelo deles era castanho? Hei de um dia deixar o castanho da paixão virar o branco do amor e ter com meu amor um dia de boa esperança. Ah, eu também disse adeus...

E virando a esquina vinha André Berilo, vamos tomar café e conversar.

Antes que ele chegasse ainda vi ao longe o velhinho, notei que tinha uma muleta e pedia ajuda para atravessar a rua, deveria ser cego. Voltava com sua cegueira de saudade para a esperança.

André sentou, e começamos a conversa...


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 01h38 de 11 de Dezembro de 2010.



Série Daniel Riva:


Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva

Daniel Riva na Promoção da Semana

A Cara Valente de Daniel Riva

Daniel, cada um é seu próprio escarro

Please, Daniel, isso é um bom conselho





Pintura: Óleo sobre tela. Sem Título de Roberto Burle Marx, De 1987.








Palavra da vez:

traição
s. f.
1. Acto!Ato ou efeito de trair.
2. Perfídia.
3. Entrega aleivosa.
4. Quebra aleivosa da fé prometida e empenhada.
5. Infidelidade conjugal.
6. Emboscada desleal; surpresa vil.
à traição: traiçoeiramente, aleivosamente.
Pelas costas, à falsa fé.

trair (a-í)
(latim trado, -ere)
v. tr.
1. Enganar com traição. = atraiçoar, falsear
2. Revelar informação que era secreta. = delatar, denunciar
3. Deixar perceber. = revelar
4. Não cumprir promessa, compromisso ou princípio.
5. Ser infiel a.
v. pron.
6. Revelar (o que se desejaria ocultar). = descobrir-se

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Soneto dos beijos que te dei, e dos que não te dei



"Soneto dos beijos que te dei, e dos que não te dei"



Se vens com olhos teus e m'alimentas
De palavras secretas, esquecidas,
Quebras minhas arestas, tu sabias:
Aclara céus e se acabam tormentas.

E se teus olhos de mim desvias
Com intuito de não te atormentares:
Enganas-te, qu'aind'assim te roubo ares,
Pois vestes do silêncio a fantasia.

Não há mais bela roupa entre os olhares,
Nem maior fruição qu'a deles se despir:
Dentro da nudez dos nossos pesares

É desnudar dos mortos o carpir;
Deixa o não-dizer beijar o que digo
E não deixas os meus beijos contigo.


(Por Marcos P. S. Caetano)


Fortaleza, 05h18 de 8 de Dezembro de 2010.


Pintura: No Dia Seguinte, Edvard Munch. Óleo sobre tela. 1894/1895.


Palavra da Vez:

tormenta
s. f.
1. Grande tempestade.
2. Fig. Agitação violenta; tumulto.

fruição (u-i)
s. f.
1. Acto!Ato ou efeito de fruir.
2. Posse.
3. Gozo.

fruir (u-í)
(latim *fruere, de fruor, frui, ter o gozo de, usufruir, conviver)
v. tr. e intr.
1. Estar no gozo ou na posse de.
2. Desfrutar; gozar.


carpir
(latim carpo, -ere, colher, arrancar, separar)
v. tr.
1. Prantear, chorar.
2. Mondar.
3. Colher, arrancar.
v. intr.
4. Chorar.
v. pron.
5. Lamentar-se.
6. Arrancar-se os cabelos (em sinal de dor).
7. Bras. Tratar e desmoitar (uma roça).


domingo, 5 de dezembro de 2010

Please, Daniel, isso é um bom conselho



"Please, Daniel, isso é um bom conselho"


A noite se deitava na cama bem mais confortada que o próprio rapaz. As duas únicas estrelas do céu daquela cabeça olhavam o breu do lado de fora. O preto que cobria o ambiente cantava apenas a música que vinha da janela da vizinha:

Ouça um bom conselho

Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado

Ou você se cansa

Está provado, quem espera nunca alcança

Daniel sentou-se. Ouviu o Bom Conselho de Chico Buarque, embora achasse a voz do poeta torta, era o conselho torto que precisava. Nunca reclamou, a sua vizinha amava Chico e passava horas ouvindo. Ele precisava era de alguém que concordasse com as bobagens da própria cabeça dele. E se esse alguém fosse um poeta renomado então...

A sua frente os papéis de contas e mais contas, centenas de reais de dívida e apenas vinte trocados para trocar vida por sobrevivência. Aquele dezembro quente estava esquentando a cabeça do sorumbático.

Venha, meu amigo

Deixe esse regaço

Brinque com meu fogo

Venha se queimar

Faça como eu digo

Faça como eu faço

Aja duas vezes antes de pensar

O Google ainda lhe disse todo o currículo de André Berilo. Estava curioso, as palavras daquele homem ecoaram na cabecinha de Daniel. Honras e mais honras ao dito cujo. Não entendia muito como um currículo daquele tinha uma personificação como aquelas palavras. Ou mesmo um cigarro que queimasse mais que pulmões, que queimasse corações. Nada mais nuncupativo.

Corro atrás do tempo

Vim de não sei onde

Devagar é que não se vai longe

Trocados num bolso, cartão no outro. Roupa qualquer, celular na calça. Os pés se puseram a sair da casa como as palavras de Chico se puseram a se calar:

Eu semeio o vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade



:



- Dani, que surpresa boa!

Não fiz muita idéia do que foi que me moveu até ali, eu não costumava fazer aquilo. Por um momento eu fui como André: o corajoso, o viril; segundo o Google. E queria ser mais que Riva, queria ser Berilo: jóia do mar. Não poderia ficar inerte para sempre, o que diabos são esses rebuliços? Ah! Não, eu deveria ter olhado o que significa Nosce Te Ipsum. Olhei tudo o que ele falou, só me esqueci disso...

- Ah, é o Daniel, amor? Chame-o para entrar.

- Não. Veio só fazer uma visita rápida, logo entro.

- Tudo bem. Mas venha que o filme está para começar, santa, vou terminar os preparativos.

Aqueles risinhos, a felicidade deles me deu três socos mais fortes que a vodka que tomei antes de vir, como é que essa pseudocoragem ainda não foi nocauteada? Ela fechou a porta. Agora somos nós dois, ninguém nessa rua deserta e noturna. O que é que eu faço? Chico! Ah, Chico! Aja duas vezes antes de pensar. Vamos!

So please please please

Let me, let me, let me

Let me get what I want

This time

Não sei se foi Chico, ou se foi The Smiths que cantava da casa dela, só sei que aquele foi as minhas pernas e estes os meus braços, já eu: o beijo.

- Daniel! Não! Eu não te amo... Assim...

E falou mais um amontoado de interjeições, uma progressão geométrica de motivos para aquilo não acontecer e inundações de perguntas de o porquê deu ter feito aquilo. Eu poderia muito bem ter engolido todas aquelas palavras, mas o CD da minha cabeça deve ter arranhado. “Eu não te amo”, a única coisa que me esfaqueou no momento, o resto era movimento de boca. Se eu tivesse simplesmente decodificado a palavra “assim” minha vida teria sido mais leve, no entanto, não eram cinco letras, eram cinco toneladas de significado que eu não tinha forças para carregar nos ombros...

- Daniel? Tá tudo bem?

Nem percebi quando foi que ela entrou, muito menos que a batida da porta foi forte. Mas o cara que a minha mente regurgitava a imagem estava na minha frente.

- Cara. Agora a gente vai ver um filme aqui. Depois a gente se fala, eu queria mesmo conversar com você... Depois te ligo e te pago um café numa tarde dessas. Falô!

“Eu não te amo”, minhas pernas que vieram com Chico voltaram com Please, please, please let me get what I want e dois litros de vodka com o resto de trocado que eu tinha:

Haven't had a dream in a long time

See, the life I've had

Can make a good man

Turn bad

Depois de ter tropeçado algumas vezes, me escorado em postes de luz outras, me arrastado mais algumas, tudo isso pelo caminho, cheguei, estava em casa. Talvez aquilo fosse tudo que eu sempre quis, tudo que nós sempre queremos. Isso era a ressaca da vida. A pouca coordenação que a vodka me deixou serviu pra mandar um torpedo para André, e, por favor, por favor, por favor, não me pergunte o motivo. Ah, eu respondo... Será que ele já passou por isso? Ou... Dizem que o amor muda muito o rumo das pessoas, penso que a falta de amor mude muito mais...

Eu juro: antes de fechar os olhos ainda procurei alguma coisa castanha para olhar.


(Por Marcos P. S. Caetano)


Fortaleza, 02h04 de 6 de Dezembro de 2010


Série Daniel Riva:

Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva

Daniel Riva na Promoção da Semana

A Cara Valente de Daniel Riva

Daniel, cada um é seu próprio escarro



Pintura: Edvard Munch, Separação: de 1896. Óleo sobre tela.



Palavras da vez:


sorumbático
(origem controversa, provavelmente relacionado com sombra)

adj. s. m.
1. Que ou quem não mostra alegria ou tem tendência para se isolar.
adj.
2. Que demonstra tristeza. = carrancudo, macambúzio, triste


nuncupativo
(latim nuncupativus, -a, -um, chamado, nominal)
adj.
1. Feito de viva voz. = oralescrito
2. Nomeado de viva voz.
3. Que é só de nome; não real. = nominal

sábado, 4 de dezembro de 2010

Amo e amo tanto



"Amo e amo tanto"



Amo e amo tanto
Que chego a amar ninguém
Amo, sim, sei que amo alguém
Amo alguma coisa em alguma hora
Amo, mas será que não amo agora?
Deixe que ao meu amor ame outrora.

Amo e amo tanto
Que chego a amar pouco o que tenho de amor
Amo e amo como um louco, que só fala de dor
Amo amores e duvido de mim mesmo
Deixo tudo que amo a esmo
Ao escuro amo, amo-me aceso.

Amo e amo tanto
Que me chega a ser difícil de entender
Que não amo os seres, amo o ser.

Assim é necessário ao amor calar
Pois, não amo o que amo, e se falo de amar
Não sei se falo por amor ou por falar.


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 01h22 de 30 de Abril de 2010












Pintura: "Melancolia" de Edvard Munch, de 1891.



Palavra da Vez:

amor (ô)
(latim amor, -oris)
s. m.
1. Sentimento que induz a aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente afeição ou atracção; grande afeição ou afinidade forte por outra pessoa (ex.: amor filial, amor materno). = afectoódio, repulsa
2. Sentimento intenso de atracção entre duas pessoas. = paixão
3. Ligação afectiva com outrem, incluindo geralmente também uma ligação de cariz sexual (ex.: ela tem um novo amor; anda de amores com o colega). (Também usado no plural.) = caso, namoro, relacionamento, romance
4. Ser que é amado.
5. Disposição dos afetos para querer ou fazer o bem a algo ou alguém (ex.: amor à humanidade, amor aos animais).desprezo, indiferença
6. Entusiasmo ou grande interesse por algo (ex.: amor à natureza). = paixãoaversão, desinteresse, fobia, horror, ódio, repulsa
7. Coisa que é !objeto desse entusiasmo ou interesse (ex.: os livros electrónicos!eletrónicos são o meu amor mais recente). = paixão
8. Qualidade do que é suave ou delicado (ex.: faz isso com mais amor). = brandura, delicadeza, suavidade
9. Pessoa considerada simpática, agradável ou a quem se quer agradar (ex.: ela é um amor; vem cá, amor). = querido
10. Coisa cuja aparência é considerada positiva ou agradável (ex.: o quarto dos miúdos está um amor).
11. Ligação intensa de carácter!caráter filosófico, religioso ou transcendente (ex.: amor de Deus).desrespeito
12. Grande dedicação ou cuidado (ex.: amor ao trabalho). = zelodescuido, negligência
amor cortês: sentimento, frequente na literatura medieval, que se caracteriza por uma relação de vassalagem entre o cavaleiro e a sua amada.
amor livre: ligação afetiva que recusa as convenções sociais e as instituições legais, nomeadamente o casamento.
fazer amor: ter relações sexuais.
morrer de amor(es): gostar muito.
não morrer de amor(es): não gostar.
por amor à arte: de forma desinteressada.
ter amor a: dar importância a (ex.: se tens amor ao dinheiro, pensa melhor).