Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Daniel, cada um é seu próprio escarro


“Daniel, cada um é seu próprio escarro”



Todos os decibéis estavam excitados. A guitarra dava as boas vindas aos que adentravam o quarto. O baixo seguia o ritmo dos passos, do fechar e trancar da porta, do gelo eriçado no copo de tequila. E Robert Plant balança como limão na bebida, até descer como poesia marginal na garganta:

You need cooling

Baby, I'm not fooling

I'm gonna send, yeah

You back to schooling

Era dia de Whole Lotta Love. E o Led Zeppelin era a fumaça do cigarro cantando.

- Aqui está bom?

O copo voltou para a mesa, assim como a jaqueta se refestelou na cadeira. O par de sapatos pretos se aproximava. Os oito brincos estavam na orelha só escutando. Os aquilinos olhos miraram o alvo. A mão e os seus cinco dedos foram o rasante. O cabelo foi segurado como o rabo de uma égua. O balbuciar da moça foi só até ela ser jogada na mesa, os objetos se esparramaram pelo chão. A tequila caiu e molhou A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud e uma caderneta com a seguinte citação: “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” Também de Freud.

Way down inside

Honey, you need it

I'm gonna give you my love

I'm gonna give you my love

Se ela tentou falar algo como “professor”, foi pra dentro. Estava de recuperação. O cinturão preto deixou de segurar as calças daquela aparição para virar mordaça; ou rédea? A batida da bateria seguia o ritmo dos tabefes. A pele que era branca ficara vermelha, o sangue saia do profundo para o raso da alma. As mãos rasgavam a pele e o suor transpirava como a morte.

Wanna whole lotta love

Wanna whole lotta love

Wanna whole lotta love

Wanna whole lotta love

Se ela tentou balbuciar algo como “professor” recebeu um “cala a boca vadia”. Naquela noite só Robert Plant gemeu, ela ficou calada, calada.

You've been learning

Baby, I been learning

All that good times

Baby, baby, I've been yearning

Way, way down inside

Honey, you need it

Ele a olhou milímetro a milímetro. Rasgou-lhe a saia. Abriu-lhe as pernas. Ela estava de bruços na mesa. E ele seguiu o ritmo da música:

Way, way down inside

I'm gonna give you my love

I'm gonna give you

Every inch of my love, gonna give you my love

As ânsias mentiam o caráter. O eu mentia o mundo. E todas as polegadas de hipocrisia rasgavam o tesão da ideologia. E todo o apartamento cantou:

Way down inside

Woman you need love

Shake for me girl

I wanna be your backdoor man

Sentou-se. A poltrona ainda a observou se ajustar. “Minha saia”, se ela perguntou isso logo recebeu um “Cai fora daqui sua puta”, além de umas cédulas. Ela ainda deve ter perguntado “Mas e o exame?”. “Cai fora daqui sua vagabunda”. Mas ela precisava de uma boa nota na disciplina de Direito Romano, com o Professor André Berilo. Naquela noite ele aplicou o exame. Ela saiu sem saber a nota. O ambiente continuou com o cheiro do vulgar. Ele ainda terminou com a tequila e o cinzeiro lotado, a fumaça ainda sussurrou:

Keep it cooling baby

Keep it cooling baby

Keep it cooling baby

Keep it cooling baby

: Daniel deitado no seu quarto ainda pensou como pensou na boate “Como deve ser um dia de André Berilo? Deve ser melhor que o meu...”. Olhava aquele cartão com o nome do Advogado e Professor de Direito, além de começar a lembrar de alguns outros trechos da conversa. “Vai ficar aí olhando a moça dançar com o cara? É, se você não faz algo na vida vem outro e faz. Larga essa cara de pamonha, Riva. Você nem a conhece...” Era um imbecil mesmo aquele careca, como veio dizer na minha cara que eu não conhecia uma amiga de longa data? Ele que não deve se conhecer... Porém, nessa vida deve mesmo ter um momento onde perdemos a nossa religião, e Daniel se lembrou de outra de André: “Você não a conhece. Para conhecer uma pessoa, Daniel, você não precisa trocar uma palavra com ela. Vá trepar com ela e saberá tudo da alma dela.”.

Berilo em um canto da cidade. Riva em outro. Depois das músicas ambos silenciaram. Daniel fechou os olhos e teve um sonho castanho. Berilo teve insônia e com seu cigarro a esquentar seu coração ainda leu os Versos Íntimos de todas as almas com Augusto dos Anjos, declamou para si:


Vês ! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera -

Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera !

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro

A mão que afaga é a mesma que apedreja


Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga

Escarra nessa boca que te beija


Cada um seu próprio escarro, sua própria loucura, sua própria sanidade, sua própria felicidade.

(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 01h50 do 1 de Dezembro de 2010.


Série Daniel Riva:

Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva

Daniel Riva na Promoção da Semana

A Cara Valente de Daniel Riva


Palavra da Vez:


quimera (é)
(grego Khímaira, -as, Quimera, ser mitológico, dekhímaira, -as, cabra jovem)

s. f.
1. Mit. Ser mitológico geralmente representado com um corpo híbrido entre leão, cabra e serpente ou dragão.
2. Coisa resultante da imaginação. = fabulação, fantasia, ilusãorealidade
3. Esperança irrealizável. = utopia
4. Ictiol. Peixe condropterígio.

sábado, 27 de novembro de 2010

A Cara Valente de Daniel Riva



"A Cara Valente de Daniel Riva"

Os aplausos, os gritos. O balançar dos braços, a euforia. Apenas os primeiros toques já anunciavam, foi quando começou:



Oh, life is bigger

It's bigger than you

And you are not me

The lengths that I will go to

The distance in your eyes


Não tem como não esquecer. Os meus olhos também cantaram R.E.M.

Aquele gás azul e roxo, aquele ar psicodélico, as pessoas não eram pessoas, as pessoas eram sombras naquela boate. Todas ali dançavam por olhos distantes, olhos de caminhos percorridos. Olhos de quem tem vontade de gritar para o mundo “Oh, life is bigger”, mas ali ninguém tinha olhos, tudo era sombra. Só os meus olhos deveriam ser de ciúmes castanheiros naquele momento. Há quatro anos ela não me mandava um torpedo como aquele: “Vms dancar hj? Passo na sua ksa”. E ali estava ela: dançando como se a vida começasse ali, como se os nossos caminhos não fossem as sombras de nós mesmos. Não! O seu movimento era liberdade. O seu movimento era confissão. O seu movimento era sua religião. E ele dançava ao lado dela, ele eu fazia questão de desintegrar da minha memória. E éramos amigos. Ela era minha amiga. Enquanto isso:


That's me in the corner

That's me in the spot light

Losing my religion

Trying to keep up with you

And I don't know if I can do it


Pedi qualquer vodka e continuei sentado enquanto dançavam. Eu não sabia dançar mesmo.

- A solidão é um exercício de estudar-se. Não?

Eu nem percebi direito quando foi que começou, mas houve um momento em que um camarada começou a conversar comigo. Meus olhos não saiam dela, porém, percebi a cabeça raspada do tal camarada. Jaqueta preta. Camisa preta por dentro. Calça jeans. Sapato preto bico italiano. Luvas pretas. Óculos que penumbravam o seu ser. Ele era pálido que cheguei a pensar que não era uma sombra. Nem sei como que prestei atenção nele, o movimento dela me parecia rito religioso. As sombras são pagãs.

- Só um ser extremamente perverso criaria um mundo onde a ordem é a lei da sobrevivência, onde para se viver é necessário matar, onde os seres se digladiam e ele assiste sentado num trono enquanto ri... E só um estulto pode ser contagiado pelo riso macabro de deus...

Eu não sei em que momento a nossa conversa tomou aquele rumo. Mas era balela. Como ele poderia ser tão tolo? Mais fanático que um religioso só um ateu mesmo. Isso que ouvi certo dia, de uma boca castanha. Aquele cara deveria ser só mais uma sombra. Ficou de conversa fiada no meu ouvido por umas boas vodkas, e bebeu uns bons minutos. Não sei como ele não percebeu, mas...

Every whisper

Of every waking hour

I'm choosing my confessions

Trying to keep an eye on you

Like a hurt, lost and blinded fool (Fool)


Ou eu estava cego, ou tudo na vida é sombra mesmo. Ela não cansava. Eles se beijaram.

Eles se beijaram!


Consider this

The slip that brought me

To my knees failed


Só depois da terceira garrafa de desilusão e da primeira vontade de ser música, eu também tive vontade de dançar, e ser sombra.

- Bem... Daniel. Está na minha hora agora. E continue como Pessoa: um fingidor. Nosce te Ipsum, companheiro, Nosce te Ipsum. Aqui está.

E me deixou um cartão, não havia percebido, mas aquele cara era advogado. Advogado do quê? Da desgraça? Eu lá sabia o que diabos era ‘nosce te ipsum’! Eles se beijaram! Porra! Eles se beijaram... É. André Berilo. Era o nome dele, estava no cartãozinho. Como deve ser um dia de André Berilo? Deve ser melhor que o meu... É. Acho que nessa vida todos nós temos um momento onde perdemos a nossa religião, seja ela qual for, seja pelo que for... Aquilo que nos religa aos outros, às sombras.


I thought that I heard you laughing

I thought that I heard you sing

I think I thought I saw you try


Doravante, eu desisti da penumbra. Isso foi o início. Eu tinha medo. Dizem que o amor muda muito o rumo das pessoas, penso que a falta de amor mude muito mais.

Eu sabia que R.E.M não pararia de cantar ali, eles ainda cantariam mais a frente...


But that was just a dream

Try, cry, why, try

That was just a dream

Just a dream, just a dream, dream


Voltamos para as nossas casas. Eu sabia que havia perdido um pouco da minha religião naquele momento. Mas não Deus. Só os nefandos perdem Deus de si, só aqueles que já estão mortos. E... Quem, ou o quê, me garante que estou vivo?

Sentei, bebi o tempo e vi a vodka passar. Cansei do inglês e que o R.E.M se exploda... Quero uma voz em português. Liguei o rádio:


Ê! Ê!
Ele não é de nada
Oiá!!!
Essa cara amarrada
É só!
Um jeito de viver na pior
Ê! Ê!
Ele não é de nada
Oiá!!!
Essa cara amarrada
É só!
Um jeito de viver
Nesse mundo de mágoas...


Não! Aquela voz! Aquele canto! Não! Assim eu não consigo esquecer que...


Oh no, I've said too much

I haven't said enough


Dizem que o amor muda o rumo das pessoas, penso que a falta de amor mude muito mais. Nem a memória e nem a vodka cessaram. A vodka não era castanha. Just a dream.

(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 14h46 de 27 de Novembro de 2010.


Série Daniel Riva:


http://marcospscaetano.blogspot.com/2010/11/arma-de-caca-na-cabeca-de-daniel-riva.html

http://marcospscaetano.blogspot.com/2010/11/daniel-riva-na-promocao-da-semana.html


Palavras da Vez:

vodca
(russo vodka)
s. f. ou m.
Aguardente feita de cereais, consumida originalmente na ex.-U.R.S.S. e na Polónia.


religião
s. f.
1. Culto prestado à divindade.
2. Por ext. Doutrina ou crença religiosa.
3. Fig. O que é considerado como um dever sagrado.
4. Reverência, respeito.
5. Escrúpulo.
6. Comunidade religiosa que segue a regra do seu fundador ou reformador.
em religião: como religioso.
religião do Estado: aquela que o governo subvenciona.


psicadelismo
s. m.
Estado de sonho em vigília provocado por vários alucinogénios, nomeadamente o L.S.D. = psicodelismo


terça-feira, 23 de novembro de 2010

Daniel Riva na Promoção da Semana


"Daniel Riva na Promoção da Semana"

My tea's gone cold
I'm wondering why I got out of bed at all

Mal acordei já percebi que havia esquecido o som ligado. Ah, e também percebi que esqueci ligada a minha dor de cabeça... Ah, não, bebi demais... E essa chuva, enquanto a música continua.

The morning rain clouds up my window
And I can't see at all
And even if I could it'd all be gray,

Som desligado, Dido calada. Calada? Melhor, não quero chuva... Ah, que boca! Mas vai, a janela até que está bonita assim. Toda embaçada, como a mente da gente, procurando gotinha por gotinha de vida, sem perceber que cai uma tempestade. Só pude cantarolar o restinho do início da música enquanto pegava minha carteira e via ao lado dela uma foto, ah! Foto pra me dar ciúmes castanheiros.

But your picture on my wall
It reminds me that it's not so bad
It's not so bad

Retrato pra baixo, carteira no bolso. Precisava esperar a chuva parar. Puxei a cadeira de balanço pra pertinho da janela. O livro estava ali na mesinha ao lado, cheio de sofrimento me olhando. Li. A minha casa não era diferente daquele livro, cheia de palavras: tijolos; cheia de páginas: pinturas; cheia de vontades: janelas; cheia de títulos: portas; com um vazio enorme, um sofrimento: eu. Um livro perdido no tempo, um livro não se lê sozinho. Ah, mas meu Deus me lia, deveria ser por isso que Ele costuma chorar mais que eu. Sou réu, Ele meu juíz.

"Quando faltamos a nós mesmos, tudo nos falta" e "As flores da vida não passam de fantasmas. Quantas murcham sem deixar vestígios! Quão poucas dão frutos e quão poucas deixam esse fruto amadurecer!", foram os dois trechos que marquei de Os Sofrimentos do Jovem Werther naquela manhã. Não sei, como podemos nos faltar se temos Deus? Como posso?! Mas eu me falto tanto.

Fechei a porta, era silêncio. Nem a chuva ousava me tirar o vazio do pensamento. Nem o molhava, meu guarda-chuva serviu como guarda pensamento vazio. Segui meu rumo para o supermercado.

O silêncio perdurou nas imagens da minha cabeça, as milhares de fotografias dela, os olhos castanhos e a pele santificada. O silêncio parece, mas não deve ser imortal como a palavra. Por isso:

- Oi, Daniel! Quanto tempo!

Ela me olhava com os mesmos olhos verdes que dantes, longos cabelos loiros e bem cuidados, um corpo com mais ondas que as praias que costumo olhar, além de uma voz que agrada qualquer homem. Eu sabia disso só porque reconheci, eu acho que nem olhei pra ela. Todos os outros homens do supermercado fizeram isso por mim, havia até esquecido como essa conhecida era bonita. Qual é mesmo o nome dela? Ela deveria ter cabelos castanhos.

I drank too much last night, got bills to pay
My head just feels in pain

O fato da Dido começar a cantar Thank You novamente, agora no supermercado, foi apenas um detalhe pra me fazer olhar para o movimento daqueles lábios falando comigo sem que eu pudesse entendê-los. Olhei para a bebida nos congelados e vi que precisava beber. A bebida não era castanha.

I missed the bus and there'll be hell today
I'm late for work again
And even if I'm there, they'll all imply
That I might not last the day

Ela ainda deve ter perguntado sobre as minhas calças sujas, era o pouco que me lembrava. Não pelo fato dela ter perguntado, mas pelo fato de ter me deixado chateado aquele ônibus que passou pela poça de lama e me banhou de bom dia antes d'eu chegar ao supermercado. Ah! Eu precisava voltar logo, acho que era o dia. Uma das minhas outras dúvidas existenciais era como eu tinha dinheiro para comprar as coisas do supermercado se não tinha emprego... Eu estava na promoção da semana, sim: Daniel Riva na Promoção da Semana.

And then you call me and it's not so bad
It's not so bad and

Esqueci o celular em casa. Nem me lembro de como é que me despedi. E não imaginava que minha memória pudesse ser tão problemática.

Quando voltei, sozinho, estava comigo mesmo, ainda passei pela poça de lama que o mundo havia me sujado e me recordei:

I want to thank you
For giving me the best day of my life
Oh just to be with you
Is having the best day of my life

Abri a porta. Havia chegado.

Push the door, I'm home at last
And I'm soaking through and through
Then you handed me a towel and all I see is you
And even if my house falls down now
I wouldn't have a clue
Because you're near me and

Ninguém além de mim naquele vão. Nenhuma chamada no celular. Sentei na cadeira de balanço, ainda chovia. Agradeci por cada gotinha, Thank You. Vi os sofrimentos de Werther caídos no chão, e observei que só consegui me recordar de três coisas do supermercado: que pensei demais nos cabelos castanhos, de que não prestei atenção na amiga que lá encontrei e que quando saí de lá vi uma flor murcha e sem oportunidade de fruto.

A minha memória não cessou. Meu Deus! Se é pra ser assim...


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 4h23 de 24 de Novembro de 2010

Série Daniel Riva:

Pintura: Monet

Palavra da Vez:

fantasma
s. m.
1. Visão quimérica como a que oferece o sonho ou a imaginação exaltada.
2. Espectro!.
3. Alma do outro mundo.
4. Imagem de algum objecto! que fica impressa na fantasia.
5. Quimera.
6. Pessoa muito macilenta, abatida e magra.
7. Espantalho para assustar as pessoas ingénuas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Não, só, te amo



"Não, só, te amo"


Amo-te com tamanha clareza
Que me cega toda a vista
Amo-te a cada pequena pista
De teu mistério e tua grandeza

Amo-te na minha falta de amor
Amor cheio e vazio de tudo
Amo-te na presença, contudo
Na falta te amo, amo-te na dor

Amo-te numa profunda morte
Morte que me passa sem doer
Amo-te vivo e também a morrer
O não amar, e amo, amo-te forte

Amo-te louco e consciente
Por te amar assim
Do princípio ao fim
Que te amo loucamente

Amo-te saudável e doente
És da minha dor o remédio
Amo-te sem nenhum intermédio
Por isso te amo perdidamente.

Amo-te com muita desalegria
De não te amar o bastante
Amo-te pouco, não obstante,
Mesmo na fundura da melancolia

Amo-te insuficientemente
Pois amor é pouco no que sinto
Amo-te: ao dizer-te só isso minto
É algo maior: indefinidamente.

(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 20 de Abril de 2010



Imagem: Flor Glória-da-Manhã. (Mais informações)


Palavra da Vez:

indefinido
(latim indefinitus, -a, -um)
adj.
1. Que não é claramente identificado ou determinado; não definido. = incerto, indeterminado, vago
2. Sem extensão determinada. = ilimitado
3. Que não tem limites. = ilimitado, infinito
4. Que não apresenta uma decisão ou uma solução.= indeciso, irresoluto
s. m.
5. O que é indefinido.

Sinónimo Geral: indefinito

sábado, 20 de novembro de 2010

Arma de Caça na cabeça de Daniel Riva



“Arma de Caça na cabeça de Daniel Riva”

Lá estava ela, desfilando no vento. E ela se dirigia a mim com passos de sorriso, os mesmos sorrisos que passeiam pela minha lembrança de dias afáveis, os dias que passaram por mim com benquerença e ternura, dias de minhas verdades. As mãos balançavam com o mesmo ritmo das ondas que um dia observamos do mar. Os castanhos cabelos o vento fazia questão de passear os dedos e de me dar ciúmes castanheiros. Aqueles olhos grandes e doces tais quais os chocolates negros que tantas vezes comemos juntos, eles piscavam e os cílios acenavam para mim como incontáveis vezes ela me acenou. A boca volumosa e com certo corte no meio, como se Michelangelo houvesse esculpido, seguia serena como se nunca precisasse falar algo, afinal nossos pensamentos caminhavam como uma única linguagem, as nossas palavras eram sincronizadas como os artistas de uma peça de teatro que algum dia nós presenciamos, fazendo arte nos davam risos, choros, rubores e amores. Aquele narizinho de batata me rememorava todas as brincadeiras tolas dos dias, aquelas que brincamos para suportar o peso das coisas. Ela não era perfeita, eu estava feliz por isso, ao menos uma única vez. Era minha amiga.

- Santa!

Aquela era uma voz que meus ouvidos faziam questão de não decodificar. Ela virou o rosto e o viu. Era assim que ele a chamava, de santa, a mais sagrada. E fora eu que um dia a apresentei a mais bela tradução dela mesma. Mas o tempo pesa na palavra. E Furtados de atenção foram os olhos dela, embora os dedos e a mão esticada em minha direção fossem o suficiente para mim, como se o corpo precisasse seguir o caminho, e seguir o caminho sempre me confortou, qualquer que fosse a estrada. Volveu para mim e deu de ombros, como se já soubesse que eu não fosse impor empecilho algum para que ela se retirasse com aquele que ela chama de amado. Então foi embora, sem mesmo chegar a me cumprimentar, era desnecessário, e nós dois sabíamos.

Dei as costas e voltei para o meu rumo, preferia que o silêncio houvesse imperado em mim, mas aquela palavra santa imperou no silêncio. Eu era como diria certa Pessoa: Uma catedral de silêncios eleitos. Naquele dia não pude distinguir as roupas dela, apenas o seu movimento, o que vestia o seu ser. Não olhei sandália, brinco, pulseira ou blusa, apenas as memórias de cada momento bom que ela levava nos pés, nas orelhas, nos braços e no peito. O riso que sempre quis rir, ou mesmo gargalhar. Eu era a minha piada.

Sentei no meio do meu rumo. Senti como se não fosse aquele tempo, até pude ver um menestrel qualquer a entrar com seu bandolim. Não. Eram os bytes que cantavam Beirut em Elephant Gun:

If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

Naquela noite bebi qualquer coisa de que não me lembro, mas funcionou: não sonhei ao dormir. O trompete anunciou que talvez eu tenha bebido esquecimento. Infelizmente não bebi o bastante. Escrevi alguma coisa em algum guardanapo, apenas o nome: Daniel Riva. Apenas o nome era legível. Era o meu nome. Vi-me através do espelho, lembrei-me de que certa vez soube que Daniel significava “Deus é meu juiz” e Riva “Rio”. Dos rabiscos que escrevi não importa o que me fez dizer, importa o que se fez ouvir. Como música:

Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around

A bala disparou, e mesmo assim a minha memória não cessou.


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 20h45 de 20 de Novembro de 2010





Pintura: Claude Monet - Le bateau atelier

Palavra da Vez:


memória

(latim memoria, -ae)
s. f.
1. Faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço.
2. Lembrança.
3. Monumento comemorativo.
4. Nome, fama (que sobrevive à pessoa ou ao facto).
5. Recordação, presente.
6. Dissertação literária ou científica.
7. Anel (que se dá como lembrança).
8. Nota diplomática.
9. Memorial, renovamento de pedido.
10. Gal. Relatório.
11. Inform. Órgão do computador que permite o registo, a conservação e a restituição dos dados.

memórias
s. f. pl.
12. Escrito narrativo em que se compilam factos, anedotas, etc.
13. Autobiografia.
14. Infrm. Cumprimentos.
de memória: de cor.
de toda a memória dos homens: de tempo imemorial.
fazer de memória: nomear, citar.
fugir da memória: esquecer.



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

"Dentro do Ser"



"Dentro do Ser"


Abalou-me a secura
Em correntes d'amargura
Não sabia o que me passava
Meu ser aos gritos: Cava! Cava!
Até que o giro do tempo me calou
A insatisfação ali se instaurou
Eu mesmo em mim alojado
O pensar inerte ao som do fado
Alegria tola do povo tolo
É a tristeza toda de todo povo
E se a tristeza é cantada
A alegria persiste no povo, calada.
Mas meu ser não é povo, é o não-é,
É música, é choro, é awaeté
Meu ser é pouco em meio a multidão.
Meu ser é pequeno, maior é meu coração.

(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 14h39 de 23 de Abril de 2010






Palavra da Vez:

fado

s. m.
1. Destino; sorte; fortuna.
2. Música, dança e canto populares portugueses.
3. Vida de alcouce.
4. Trás-os-M. Pândega, pouca-vergonha.

fados
s. m. pl.
5. Providência; fatalidade.
6. Fim de vida.

fadar
v. tr.
1. Predestinar.
2. Determinar a sorte de.
3. Dotar.
4. Vaticinar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"Seol da Amizade"



“Seol da Amizade”


A grama era verde e alimentada por sonhos mortos, as árvores tinham mais vida que os que por elas passavam. Tudo aqui sempre é colorido, como se as flores fossem os balões de uma festa, porém, os convidados monocromáticos só enxergam as coisas em preto e branco. Eles vêm com as suas mãos cheias de cárceres para passá-las na morte como quem brinca com a sorte. Seus olhos de lápides são o outdoor da tristeza. Os sinos são os fogos da festa e o silêncio ululante a música de fundo. O morto é a estrela da tarde.


Todos deveriam ter um sepultamento digno como aquele, pois é a maior das nossas celebrações. É o adeus da autonomia da alma, tão mortal quanto o corpo. E toda aquela gente ali reunida, todos celebrando um fim velado de eternidade. Desciam o seu dito amigo ao Seol* para não mais voltar. Guardavam-no como se um dia ele fosse acordar de um sonho, enquanto muitos vivos não têm tão boas condições de dormir.


Como W. H. Auden, todos já haviam parado os relógios e desligado os telefones, todas as carpideiras carpiam um Fúnebre Blues. Até os vermes estavam preparados para a festa, queriam o seu desjejum. Prontos para desembalar o corpo e comer a alma, esta a vela aquele o bolo. Mas a alma já não era do morto.


As pessoas então carpiram o egoísmo e os traumas no caixão, o morto desceu com mais pesar que quando morreu. As lágrimas foram o cimento que deu firmeza ao ataúde. Como qualquer morto quando morre ele desceu ao inferno dos sofrimentos alheios.


É bonito chorar e é bonito sofrer. Todos ali estavam belos: a beleza deles é um necrotério de corpos dissecados. E a felicidade do morto um genocídio de felicidades alheias...


Procurei um sorriso perdido, encontrei um único, embora molhado, era um sorriso de algum amigo. O nosso corpo tem a sepultura no mundo, já a nossa alma nas outras almas. Enquanto o cemitério do corpo é a cidade, o cemitério da alma é a amizade.


O morto desceu como quem realiza um sonho e os outros ficaram como quem não sabe partilhar do sonho amigo. Talvez aquele sorriso tenha entendido a Lápide que cita Cícero em A Amizade:


“Quocirca maerere hac ejus eventu vereor

Ne invidi magis quam amici est”


O sorriso saiu e deixou os prantos por lá, e pensou como uma laje sepulcral: “Receio que lamentar aquela perda seja mais inveja que amizade”.


(Por Marcos P. S. Caetano, 14h07 de 17 de Novembro de 2010)




*Seol:

Sheol, Xeol ou Seol, (pronunciado "Sheh-ol"), em Hebraico שאול (She'ol), é o "túmulo", ou "cova" ou "abismo".

No Judaísmo She'ol é o local de purificação espiritual ou punição para os mortos, um local o mais distante possível do céu. De acordo com a maior parte das fontes judaicas, o período da purificação ou punição é... (Para mais informações sobre Seol, só clicar)


PS: Imagem do Filme Quatro Casamentos e um Funeral, que cita o Poema Fúnebre Blues de Auden.


Palavra da Vez:


morte
s. f.
1. Acto! de morrer.
2. O fim da vida.
3. Cessação da vida (animal ou vegetal).
4. Destruição.
5. Causa de ruína.
6. Termo, fim.
7. Homicídio, assassínio.
8. Pena capital.
9. Esqueleto nu ou envolto em mortalha, armado de foice, que simboliza a Morte.
de má morte: que não presta para nada.
de morte: de modo a causar a morte (ex.: ferido de morte). = letalmente, mortalmente
de modo muito intenso. = intensamente, profundamente
que causa morte. = letal, mortal
que é intenso (ex.: ódio de morte).
que é muito engraçado (ex.: aquele gajo é de morte)
morte civil: estado do que perde todos os seus direitos civis por pena infamante.
morte natural: não violenta.
pensar na morte da bezerra: estar distraído.